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Pulp Fiction de Rodoviária


Devido a viagens de ônibus cada vez mais frequentes de um lado para o outro, a trabalho e a lazer, tenho dedicado mais tempo ao hábito da leitura do que a ver filmes (não acompanhei quase nada dos últimos lançamentos nos cinemas). E quando você lê muito rápido, como eu, é comum ficar sem "munição" bem no começo de uma viagem. Nesse caso, é preciso apelar para uma banca de jornais ou livraria, em busca de gibis ou livros baratinhos que durem o tempo da viagem de ônibus.

Porto Alegre, uma quinta-feira - antes de longa viagem a Curitiba. Entro numa banca em busca de literatura rápida e rasteira e, numa das paredes do estabelecimento, deparo-me com uma verdadeira volta no tempo: num singelo mostruário de plástico, estão exibidos dezenas de livrinhos de bolso (hoje é chique usar o termo em inglês, "pocket book") com aquela pulp fiction bem vagabunda, de rodoviária mesmo.

Porque se hoje o "pocket book" está na moda e você pode comprar best-sellers (inclusive do Stephen King) e clássicos da literatura (de Nietzsche a Shakespeare) em formato de bolso, numas edições caprichadas com papel de qualidade e bonito acabamento, no passado apenas historinhas bobas de faroeste, espionagem, terror e putaria saíam como pocket, tentando atingir um público popularzão mesmo.

Por isso, eram umas publicações extremamente vagabundas, em papel jornal e com impressão tosca, cheia de erros. As tramas eram simples e rápidas, com poucos personagens e muita ação (às vezes umas descrições bem gráficas de cenas de sexo também). Não tinham mais do que cento e poucas páginas, mas se você copiasse e colasse o texto em formato A4, o total não chegaria a 40 ou 50 páginas.

Enfim, a verdadeira leitura descartável: aquilo era algo que você lia em poucas horas para passar o tempo, e em questão de minutos já tinha esquecido de tudo. É muito difícil você encontrar alguém que saiba os títulos dos pocket books que já leu. Muitos inclusive jogavam os livrinhos no lixo ao invés de colecionar!

Aí lembrei que, tempos atrás, comentei com um amigo aqui de São Paulo sobre o sumiço dessa pulp fiction de rodoviária. Quem é das antigas deve lembrar com saudade das publicações da (extinta?) Editora Monterrey, que entre a década de 60 e o começo dos anos 1990 entulhava bancas, livrarias e rodoviárias com seus pockets de papel jornal a preços bem populares. Havia outras editoras, mas a Monterrey era líder de mercado no ramo.


Tinha livrinho para todos os gostos. A série "FBI", por exemplo, contava histórias policiais, "Epopéias de Guerra" narrava tramas bélicas, e havia ainda uma infinidade de selos diferentes para histórias de bangue-bangue, como "Oeste Brutal", "Feras do Oeste", "Chumbo Mortal" e até "Oeste Sensual" (dependendo da série que você escolhia, as histórias tinham mais ou menos ação e sacanagem). Eram o equivalente masculino àqueles livretos de mulherzinha tipo "Julia", "Sabrina" e "Bianca", que não eram exatamente pocket books, mas tinham a mesmíssima proposta.

A maioria das histórias da Monterrey eram escritas por um mesmo cara, que assinava com 30 pseudônimos diferentes para parecer que havia todo um rol de "autores" na folha de pagamento da editora. Por exemplo, Rubens Francisco Lucchetti, autor dos roteiros dos filmes do Zé do Caixão e do Ivan Cardoso, escreveu muitos livros de bolso, só não sei se para a Monterrey. Mas o campeão foi o paulista Ryoki Inoue, que chegava a escrever três pockets num dia, e assinou (com nomes falsos) mais de mil, façanha que lhe rendeu menção no Guinness Book of Records.

(Para saber mais sobre a trajetória do prolífico autor brasileiro de pulp fiction, confira seu site, onde inclusive é informada a sua extensa bibliografia.)


Outra série bem popular da Monterrey era a "ZZ7", que narrava as aventuras de uma espiã sensual chamada Brigitte Monfort, uma espécie de James Bond em versão feminina - inclusive usava o corpão para seduzir os inimigos, em relatos eróticos perfeitos para adolescentes entrando na puberdade.

Esses livrinhos da "ZZ7" (007, alguém?) foram um sucesso estrondoso. Eram escritos pelo espanhol Francisco Ramires sob pseudônimo em inglês ("Lou Carrigan"). Sozinho, Ramires/Carrigan criou mais de 400 aventuras de Brigitte, que saíam por aqui com capas altamente sensuais desenhadas pelo artista brasileiro Benício (o mesmo que fazia os pôsteres das pornochanchadas da época).

Para dar uma ideia do sucesso de "ZZ7" no país, os livrinhos eram originalmente publicados na "Série Vermelha", com o logotipo em cor vermelha na capa; algum tempo depois, a procura pelas aventuras antigas era tão grande que a Monterrey começou a relançar tudo em "segunda edição", mas dessa vez com o logotipo azul, no que ficou conhecido como "Série Azul". Já nos anos 90, antes que essas publicações de bolso fossem sumariamente canceladas, a editora já estava republicando tudinho pela terceira vez na "Série Verde"!!!

Na pré-adolescência, meu hábito de leitura foi formado com os saudosos livros da série Vagalume e também com essas publicações vagabundas da Monterrey, especialmente as aventuras de faroeste e de Brigitte Monfort. Cheguei a ter uns 100 pockets da editora, mas, após uma limpeza no quarto lá pelo começo do ano 2000, doei tudo para uma biblioteca. Nem era o tipo de coisa que você iria querer ler mais de uma vez, mesmo...

Tempos depois, fiquei com saudade dessa página esquecida do mercado literário nacional. Ao perceber que a pulp fiction de rodoviária havia sumido das bancas, pensei que seria interessante recomeçar uma coleção dos velhos livrinhos "ZZ7", só por nostalgia. Mas o preço absurdo cobrado pelos sebos me fez mudar de ideia rapidinho.

E é nesse ponto que voltamos à banca de jornal de Porto Alegre, com seu mostruário de pocket books vagabundos. Fazia um tempão que eu não via mais produtos do gênero, e imaginei que fosse um revival, uma tentativa de retomar aquele nicho de mercado de grande sucesso no passado.

Essas obras em questão eram publicadas pela Editora Fittipaldi e tinham uma apresentação semelhante aos velhos livrinhos da Monterrey, embora com qualidade ainda mais vagabunda. Havia no mostruário pockets com histórias policiais, de faroeste e de terror, publicadas com rótulos pomposos tipo "Pocket Suspense Diamante".

Como a promoção era estilo "um por R$ 2 e três por R$ 5", peguei logo três títulos da tal Coleção Suspense. E só no ônibus, quando tirei os livros do plástico que os envolvia, descobri, frustrado, que não são exatamente novos, mas sim publicações editadas em 1995 e 1996 (!!!), portanto há quase 20 anos, e encalhadas lá no mostruário da banca desde então (por isso que nunca vi o diacho dos pockets da Fittipaldi para vender em outros locais!).


Li os três em poucas horas, e então percebi porque eles estão sem encontrar comprador desde 1995. Primeiro porque nesse país ninguém mais lê sequer livros bons, quem dirá essas porqueiras para consumo rápido; segundo que não bastasse a péssima qualidade da apresentação, as histórias desses livrinhos da Fittipaldi são muito, mas muito abaixo da média.

Os livros seguem o "padrão Monterrey": títulos genéricos e/ou apelativos (Trama Diabólica, Terror em Sumerville e Círculo do Terror), autores brasileiros usando ridículos pseudônimos "importados" (respectivamente Gaskeel Holand, Constance Gray e Tony Carson) e capinhas "sensuais" copiando Benício, mas agora no traço de um tal Balieiro (e mais ousadas que as de antigamente, com peitos e bundas de fora, mesmo quando nem sequer há sexo na trama!).

Dos três, o único que poderia render uma boa história de horror (desde que sofrendo uma recauchutagem geral, óbvio) é Terror em Sumerville, sobre uma mansão assombrada pelos espíritos de soldados torturados e mortos na Guerra da Secessão. Engraçado é que o título é Terror em SUmerville, mas o bairro em que se passa a história chama-se "SOmerville". E a "autora" Constance Gray copia "O Iluminado" em diferentes momentos, sem a menor vergonha na cara.


Os outros dois são um engodo. Círculo do Terror é uma história erótica à qual foram adicionados toques sobrenaturais para vender como livro de horror. Percebe-se que a especialidade do autor Tony Carson é a putaria, já que ele usa páginas e mais páginas para narrar as (várias) trepadas nos seus mínimos detalhes, mas depois não sabe o que fazer quando demônios e assombrações entram em cena.

Resta, assim, o deleite punhetístico de descrições românticas como "Roy retesou o corpo e levantou os quadris, como se fosse fazer seu corpo todo penetrar pela abertura quente da mulher", ou "O homem começou a movimentar-se com mais vigor. Os golpes se sucederam com uma cadência desenfreada, até que ambos se sentiram fundir-se numa só pele, gozando a delícia do prazer".

Trama Diabólica é um engodo. O "resumo" da história na contracapa não diz nada com nada, e, filosoficamente sensacionalista, lembra as chamadas nos trailers de filmes do Zé do Caixão. Confira:


Apesar de tanto lero-lero, o livro conta apenas a história (fraquíssima) de um sujeito paralisado numa cama após acidente, e a quem os parentes querem matar para ficar com sua fortuna. Sorte que ele usa insuspeitos poderes telepáticos para se comunicar com os mortos e iniciar uma vingança.

Esse é trashão total: a história é digna de redação do Ensino Fundamental, mas o autor "Gaskeel Holand" fica colocando umas citações intelectualóides para tentar (inutilmente) tornar o texto mais rico.

Como quando um personagem diz: "Se Ana Bolena (sic) não houvesse colocado chifres em Henrique VIII, este não teria mandado cortar sua cabeça. A vida de cada pessoa é como é, querido Corrie". Ou "Estou me lembrando de Macbeth e do seu banquete, quando Banquo se apresentou entre os convidados depois de ter acabado de ser assassinado".

Mas o auge da doideira é quando "Holand" narra um ritual demoníaco tomando emprestados elementos de vodu, macumba e missa negra. Animais são sacrificados e o "bruxo" invoca Erzulli, Belial e até Iemanjá, que de demoníaca não tem absolutamente nada!!!

No fim, por mais que os três livrinhos tenham me divertido na sua pobreza e ruindade, bateu o saudosismo: numa comparação grosseira, os velhos títulos publicados pela Monterrey décadas atrás estão para Shakespeare como esses "novos" da Fittipaldi estão para Paulo Coelho!

Tempos tristes esses em que os caras não conseguem fazer nem pulp fiction de rodoviária...

PS: Na próxima atualização voltamos à nossa programação normal de filmes bagaceiros!

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