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Em
1992, Luiz Pacheco deu uma extensa entrevista à saudosa Kapa, no número
22, de Julho. Os entrevistadores foram Carlos Quevedo e Rui Zink. Aqui
fica:
PARA DAR O EXEMPLO.Por Carlos Quevedo/Rui Zink
.FOMOS ENTREVISTAR O MAIOR ESCRITOR VIVO. O MAIS ESCRITOR, O MAIS PORTUGUÊS, O MAIS VIVO: LUIZ PACHECO.
Luiz Pacheco, escritor, sofre de asma brônquica. Calvície precoce. Fractura do úmero devido a tentativa de suicídio na Av. De Berna. Queda de dentes natural quase total. Efizema pulmonar bilateral diagnosticado em 1958, obrigado a uso permanente de botija de oxigénio, à noite e ao levantar. Hérnias inquinais não operadas com uso de funda dupla. Hipersensibilidade ao álcool, o que o conduziu a uma fraudulenta fama de alcoólico incorrigível.
Tratamento de desintoxicação no Centro António Flores, ambulatório e dois internamentos. Miopia e astigmatismo, quase cegueira. Bissexual assumido. Leve surdez do ouvido esquerdo. Andropausa total. Três mulheres reconhecidas. Três estadias no Limoeiro: 1957, 1959, 1968. Duas estadias na cadeia das Caldas da Rainha: 1967, 1968. Prisões ocasionais e breves em esquadras da polícia. Autor, entre outros títulos, de: Literatura Comestível. O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor. Exercícios de Estilo. Comunidade.
. K: Que idade é que tinha quando escreveu o Libertino?
.Tinha 36 anos. Estava à espera que me servissem o almoço na Pensão Oliveira, e enquanto me serviram fui relatando os acontecimentos da véspera. Vê-se que houve pressa de escrever.
.K: Não houve modificações?
.Não, quase não houve. Este texto é o que mais me tem rendido dinheiro, mas também rende famas, rende (risos)… porque eu não estava lá em Braga para andar atrás de magalas. Quanto a mim este é um texto circular, começa na morte e acaba na morte, acaba no fracasso. Há sempre uma ideia, quando se faz um texto, há uma ideia estética por trás. A ideia estética que está por trás deste texto é uma coisa que eu nunca vi que é o chamado cinema verité. É aquele gajo que sai para o meio da rua com uma máquina, não é? e começa a filmar coisas. Mas, é claro, este cinema verité é falso, porque a máquina não filma indiferentemente, a máquina filma para onde ele aponta a objectiva, não tira fotografias, é ele que escolhe os ângulos. Portanto, o cinema verité, que em princípio seria um cinema de verdade, é um cinema de construção como qualquer outro. Aqui um bocadinho por trás do texto, sem se dizer nada, houve a noção isto: «Vamos lá ver onde é que eu andei ontem e, antes que me esqueça, escrever tudo».
.K: Há quem diga que só começou a escrever nos anos 60. É verdade?
.Nos anos 60? Não! Eu comecei a escrever até bastante novo; agora publicaram um texto meu escrito com 20 anos. Não, nos anos 60 já quase não escrevia.
. K: Agora já só faz reedições? Passou à história?
.Ó pá, é muito difícil, no meu estado, escrever capazmente. Um escritor é como um boxeur ou como um futebolista: tem prazo de validade. Há obras que se fazem em ascensão. O Beethoven, por exemplo, vai sempre em ascensão – a 9ª sinfonia, depois seria a 10ª, depois seria a 11ª, se ele aguentasse mais um tempo. E há obras que se fazem um bocadinho datadas. Insistir depois disso seria estúpido. O que me distrai agora é gravar. Mas como não tenho luz, até gravar é difícil. E as pilhas são um balúrdio, as cassetes são um balúrdio, um tipo está a gravar às escuras, de repente já está a gravar por cima de outra coisa… De maneira que agora estou parado, estou reformado. Eu escrevo: escriba/reformado, ou reformado/escriba, tanto faz. Não estou à espera de fazer nada de especial.
.K: Eu pensava que a diferença entre o futebol ou o boxe e a escrita é que eles eram obrigados a reformar-se aos 30 anos e nós podíamos continuar até à vitória final…
. Você está a assistir àquilo que eu chamo escritor/escriba avençado: é um tipo que tem que fornecer à editora todos os anos um original e que portanto vai lá ao fundo da gaveta, sai-lhe a palha e faz um original. Você não acha que o Vergílio Ferreira está já reformado há muito tempo?
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.FOMOS ENTREVISTAR O MAIOR ESCRITOR VIVO. O MAIS ESCRITOR, O MAIS PORTUGUÊS, O MAIS VIVO: LUIZ PACHECO.
Luiz Pacheco, escritor, sofre de asma brônquica. Calvície precoce. Fractura do úmero devido a tentativa de suicídio na Av. De Berna. Queda de dentes natural quase total. Efizema pulmonar bilateral diagnosticado em 1958, obrigado a uso permanente de botija de oxigénio, à noite e ao levantar. Hérnias inquinais não operadas com uso de funda dupla. Hipersensibilidade ao álcool, o que o conduziu a uma fraudulenta fama de alcoólico incorrigível.
Tratamento de desintoxicação no Centro António Flores, ambulatório e dois internamentos. Miopia e astigmatismo, quase cegueira. Bissexual assumido. Leve surdez do ouvido esquerdo. Andropausa total. Três mulheres reconhecidas. Três estadias no Limoeiro: 1957, 1959, 1968. Duas estadias na cadeia das Caldas da Rainha: 1967, 1968. Prisões ocasionais e breves em esquadras da polícia. Autor, entre outros títulos, de: Literatura Comestível. O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor. Exercícios de Estilo. Comunidade.
. K: Que idade é que tinha quando escreveu o Libertino?
.Tinha 36 anos. Estava à espera que me servissem o almoço na Pensão Oliveira, e enquanto me serviram fui relatando os acontecimentos da véspera. Vê-se que houve pressa de escrever.
.K: Não houve modificações?
.Não, quase não houve. Este texto é o que mais me tem rendido dinheiro, mas também rende famas, rende (risos)… porque eu não estava lá em Braga para andar atrás de magalas. Quanto a mim este é um texto circular, começa na morte e acaba na morte, acaba no fracasso. Há sempre uma ideia, quando se faz um texto, há uma ideia estética por trás. A ideia estética que está por trás deste texto é uma coisa que eu nunca vi que é o chamado cinema verité. É aquele gajo que sai para o meio da rua com uma máquina, não é? e começa a filmar coisas. Mas, é claro, este cinema verité é falso, porque a máquina não filma indiferentemente, a máquina filma para onde ele aponta a objectiva, não tira fotografias, é ele que escolhe os ângulos. Portanto, o cinema verité, que em princípio seria um cinema de verdade, é um cinema de construção como qualquer outro. Aqui um bocadinho por trás do texto, sem se dizer nada, houve a noção isto: «Vamos lá ver onde é que eu andei ontem e, antes que me esqueça, escrever tudo».
.K: Há quem diga que só começou a escrever nos anos 60. É verdade?
.Nos anos 60? Não! Eu comecei a escrever até bastante novo; agora publicaram um texto meu escrito com 20 anos. Não, nos anos 60 já quase não escrevia.
. K: Agora já só faz reedições? Passou à história?
.Ó pá, é muito difícil, no meu estado, escrever capazmente. Um escritor é como um boxeur ou como um futebolista: tem prazo de validade. Há obras que se fazem em ascensão. O Beethoven, por exemplo, vai sempre em ascensão – a 9ª sinfonia, depois seria a 10ª, depois seria a 11ª, se ele aguentasse mais um tempo. E há obras que se fazem um bocadinho datadas. Insistir depois disso seria estúpido. O que me distrai agora é gravar. Mas como não tenho luz, até gravar é difícil. E as pilhas são um balúrdio, as cassetes são um balúrdio, um tipo está a gravar às escuras, de repente já está a gravar por cima de outra coisa… De maneira que agora estou parado, estou reformado. Eu escrevo: escriba/reformado, ou reformado/escriba, tanto faz. Não estou à espera de fazer nada de especial.
.K: Eu pensava que a diferença entre o futebol ou o boxe e a escrita é que eles eram obrigados a reformar-se aos 30 anos e nós podíamos continuar até à vitória final…
. Você está a assistir àquilo que eu chamo escritor/escriba avençado: é um tipo que tem que fornecer à editora todos os anos um original e que portanto vai lá ao fundo da gaveta, sai-lhe a palha e faz um original. Você não acha que o Vergílio Ferreira está já reformado há muito tempo?
.
K: Sim.
.Então porque é que publica? É uma questão de taco. Uma questão também de, enfim, sei lá, de hábitos, de vaidade, de poder. O Saramago se tivesse ficado pelo Memorial do Convento não teria ficado melhor? Agora até publicaram os textos macacos que ele escrevia no Diário de Notícias, no Diário de Lisboa, as opiniões que o DL teve, Basta de Censura, uns poemas que são uma calamidade. Contaram-me que agora (não sei se é verdade se é mentira) a Caminho recebeu uma encomenda de Angola de um ministro a pedir 500 exemplares do Manual de Caligrafia e Pintura, porque o homem supôs que era um manual mesmo, uma maneira de ensinar a escrever a pretalhada, em vez de escreverem gatafunhos. Sabia desta?
. K: Não, não conhecia essa anedota.
.
Não passa de uma anedota, não é? A má língua aqui é muito grande, e o Saramago hoje tem 99% das invejas nacionais de todos os escritores, porque de facto ele conseguiu uma posição que mais ninguém tem, nem mesmo o Fernando Namora se fosse vivo.
.K: Mas a ideia que eu tenho é que o Saramago vale um pouco mais que o Namora.
.
É pá! Nem me digas isso, pá, o Namora é abaixo de cão, nem é abaixo de Namora, é abaixo de cão, isso eu escrevi! E, aliás, ainda por cima é gatuno, roubou lá umas coisas ao Vergílio Ferreira. Nesse ponto o Vergílio Ferreira tinha uma posição de grande valor intelectual e bagagem ensaística. Agora foi ultrapassado por este, o Saramago, que é muito mais novo. É inteiramente justo. Eu comprei o Evangelho, ele costumava-me mandar, mas eu comprei: li duas páginas e depois fui ver que faltavam ainda 500 ou 400 e não li mais nada.
.K: O seu filho Paulo é no encarregado do seu espólio?
.Sim, o Paulo está encarregado e tenho a impressão que vai fazer uma grande fogueira aí em casa, ali na varanda ou no guarda-tudo, que ele tem uma procuração legal para me representar junto da SPA; e esta edição já é obra dele, esta edição já pode considerar-se póstuma. Eu vi esta edição assim como ela está agora. Revi com muito cuidado, detesto gralhas, fiz uma ligeira limpeza do género de umas exclamações, umas reticências. Mas o texto está aí integralmente e – há mal em dizer isto? – o que era giro não era publicar isto agora, o que era giro era publicar isto como ele foi publicado em 1970, com a PIDE, com censura, com repressão, isso é que foi giro, publicar em 1970 e depois uma actualização em 73, 72/73, três mil exemplares. Foi debaixo da repressão e nessa altura quem escrevesse isto em Portugal, não havia ninguém, que eu saiba não houve ninguém, parece que há uma coisa do Costa Ferreira, o Costa Ferreira em 68 publicou um texto assumindo a sua homossexualidade, que no Libertino nem está assumido, não é assumida, não se passa nada. Sexualmente falando, bem espremido, o Libertino é uma «nega» pegada, são sopas e mais sopas.
. K: Porquê Braga e não a Buraca?
.
Se não fosse em Braga não tinha a mesma importância. Braga, com fedor a padre, era uma cidade de facto perfeita. Eu até era para dedicar isto ao Arcebispo de Braga, mas aí o meu filho e a tipografia acharam mais prudente não o fazer. Era para dedicar isto àquele gajo que nem abortos, nem preservativos, nem mães solteiras nem nada disso. Era para o insultar, porque Braga de facto continua a ser um expoente da pata da Igreja em Portugal. Portanto em Braga há esse desafio, esse desafio D. Juanesco, o tipo que vai lá buscar a noiva ao convento para fazer a sua ofensa a Deus, quer dizer, toma Deus como seu rival. Em 1970, já depois disto escrito, comecei a interrogar-me sobre o que seria libertino e libertinagem e não achei definição. Eu tinha li o Roger Vailland e tinha lido o Sade. A primeira pessoa que editou o Marquês de Sade em Portugal fui eu.
.K: O que é um libertino?
.
O libertino para mim, é mais fácil de definir pela negativa. A libertinagem não é o medo, não é a devassidão, não é a tristeza. É o ateu progressista. É preciso não esquecer que o Marquês de Sade, depois de ter saído da Bastilha, pertenceu a um comité do povo, e nesse comité do povo ele fez uma acção humana, que foi salvar a sogra que o tinha perseguido durante 40 anos ou coisa que o valha. Ele não mandou cortar a cabeça da sogra, mas a sogra merecia.
. K: Porque é que o libertino não é um devasso?
.O devasso é o gajo que não tem regras, é o gajo que vai a todas, é um bocadinho o Ribeiro de Mello, benza-o Deus, que já está no outro mundo. A Natália Correia é uma devassa, vocês ponham isso que ela fica toda zangada, mas ela é uma devassa. Por exemplo, ela foi à estreia, não, ela não foi à estreia mas foi lá ver a Comunidade e ela diz: «Afinal de contas o Luiz Pacheco é um pater famílias, a libertina sou eu». Eu, se estivesse lá dizia: «Ó sua maluca, você não é uma libertina, você é uma devassa», é uma estragadona que não respeita pai nem mãe, vai meter-se com o irmão de uma mulher minha, com um tio deste, quando eu estava preso no Limoeiro. Ela meteu-se com uma mulher minha. Quer dizer, abusou da situação de eu estar preso para aproveitar uma rapariga que estava lá em casa por caridade. E depois, quando eu saí, claro que fiz uma guerra, ataquei uma mulher dela, à má fila, para ela saber o que é bom. Portanto vocês têm uma noção de como é o libertino, eu tenho esta que é feita por negativas. O libertino faz da sua vida um espectáculo; ora este texto é um espectáculo, é a tal noção do cinema verité, quer dizer, vai mostrando o libertino a fazer aquelas maluqueiras todas, com o vinho verde, que é um vinho que não dá muita perturbação. Vai mostrando os fracassos, vai-se confessando, mas também há um certo gozo masoquista disso. O que não é tristeza.
.K: Portanto a diferença aí é mais o assumir o que o devasso esconde.
. Sim o devasso esconde e baralha, e…
.K: Em A Comunidade ou outros textos há sempre este jogo autor/personagem e, já agora, há a questão do Limoeiro.
. Quando eu digo que fui para o Limoeiro três vezes, as pessoas podem ficar a supor que matei o pai, matei a mãe, matei a avozinha. Quando fui para ao Limoeiro, por exemplo, por dar um beijo a uma menina de 15 anos! Pregaram comigo no Limoeiro por atentado ao pudor e depois de estar lá um mês, cheio de medo, absolveram-me.
. K: Foi denunciado por quem?
.Fui eu que me denunciei. Fui eu que disse na Judiciária. «O senhor teve alguma coisa com a menor?» «Sim beijei-a». «O senhor beijou-a?» O agente foi excepcionalmente simpático, disse-me: «Eu devo avisá-lo de uma coisa: a sua posição no processo permite-lhe mentir». Mas eu estava armado em D. Juan, em galã, «não, eu não venho aqui para mentir». Claro que também não disse a verdade toda. Não foi só o beijo, está claro. Mas nem o beijo comprometia a rapariga, e mostrava que tinha uma grande paixão por ela. Até tenho uma filha – a irmã mais nova deste chama-se Maria Eugénia por causa dessa rapariga.
Portanto, quando se fala em Limoeiro não vão julgar que eu andei para aí a esfaquear pai e mãe. Por exemplo, eu fiz coisas muito mais perigosas cá fora pelas quais nunca fui preso. Fui para ao Limoeiro e à cadeia das Caldas das Rainha duas ou cinco vezes.
.K: E também esteve num sanatório, não foi?
. Fui parar ao sanatório de Torres Vedras. As pessoas diziam: «Então este gajo é tuberculoso, tiraram-lhe um pulmão. Terá um cancro?» Não, fui parar ao sanatório porque não tinha onde dormir, não tinha onde comer e pedia. E como tinha a asma, lá ia para o sanatório com diagnóstico de tísico. Fui para ao Rego duas vezes com diagnóstico de diabetes descompensada. Ora eu nunca tive diabetes, eu pedia era à médica para me meter lá um mês ou dois no Rego a comer e a beber e dar-me injecções, que eram uns tónicos. Diabetes descompensada! Nunca tive diabetes na minha vida.
.K: Então as duas prisões foram sempre por atentado ao pudor?
.Atentado ao pudor não, estupro, primeiro, atentado ao pudor, e depois outra vez atentado ao pudor. Com a mãe daquele foi pior, foi por rapto e estupro. Não raptei nada. Bem, estupro, faz favor, nasceram três, nasceram dois e meio pelo menos.
. K: Porquê «meio»?
.Porque acho que esteve metido outro gajo.
.Então porque é que publica? É uma questão de taco. Uma questão também de, enfim, sei lá, de hábitos, de vaidade, de poder. O Saramago se tivesse ficado pelo Memorial do Convento não teria ficado melhor? Agora até publicaram os textos macacos que ele escrevia no Diário de Notícias, no Diário de Lisboa, as opiniões que o DL teve, Basta de Censura, uns poemas que são uma calamidade. Contaram-me que agora (não sei se é verdade se é mentira) a Caminho recebeu uma encomenda de Angola de um ministro a pedir 500 exemplares do Manual de Caligrafia e Pintura, porque o homem supôs que era um manual mesmo, uma maneira de ensinar a escrever a pretalhada, em vez de escreverem gatafunhos. Sabia desta?
. K: Não, não conhecia essa anedota.
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Não passa de uma anedota, não é? A má língua aqui é muito grande, e o Saramago hoje tem 99% das invejas nacionais de todos os escritores, porque de facto ele conseguiu uma posição que mais ninguém tem, nem mesmo o Fernando Namora se fosse vivo.
.K: Mas a ideia que eu tenho é que o Saramago vale um pouco mais que o Namora.
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É pá! Nem me digas isso, pá, o Namora é abaixo de cão, nem é abaixo de Namora, é abaixo de cão, isso eu escrevi! E, aliás, ainda por cima é gatuno, roubou lá umas coisas ao Vergílio Ferreira. Nesse ponto o Vergílio Ferreira tinha uma posição de grande valor intelectual e bagagem ensaística. Agora foi ultrapassado por este, o Saramago, que é muito mais novo. É inteiramente justo. Eu comprei o Evangelho, ele costumava-me mandar, mas eu comprei: li duas páginas e depois fui ver que faltavam ainda 500 ou 400 e não li mais nada.
.K: O seu filho Paulo é no encarregado do seu espólio?
.Sim, o Paulo está encarregado e tenho a impressão que vai fazer uma grande fogueira aí em casa, ali na varanda ou no guarda-tudo, que ele tem uma procuração legal para me representar junto da SPA; e esta edição já é obra dele, esta edição já pode considerar-se póstuma. Eu vi esta edição assim como ela está agora. Revi com muito cuidado, detesto gralhas, fiz uma ligeira limpeza do género de umas exclamações, umas reticências. Mas o texto está aí integralmente e – há mal em dizer isto? – o que era giro não era publicar isto agora, o que era giro era publicar isto como ele foi publicado em 1970, com a PIDE, com censura, com repressão, isso é que foi giro, publicar em 1970 e depois uma actualização em 73, 72/73, três mil exemplares. Foi debaixo da repressão e nessa altura quem escrevesse isto em Portugal, não havia ninguém, que eu saiba não houve ninguém, parece que há uma coisa do Costa Ferreira, o Costa Ferreira em 68 publicou um texto assumindo a sua homossexualidade, que no Libertino nem está assumido, não é assumida, não se passa nada. Sexualmente falando, bem espremido, o Libertino é uma «nega» pegada, são sopas e mais sopas.
. K: Porquê Braga e não a Buraca?
.
Se não fosse em Braga não tinha a mesma importância. Braga, com fedor a padre, era uma cidade de facto perfeita. Eu até era para dedicar isto ao Arcebispo de Braga, mas aí o meu filho e a tipografia acharam mais prudente não o fazer. Era para dedicar isto àquele gajo que nem abortos, nem preservativos, nem mães solteiras nem nada disso. Era para o insultar, porque Braga de facto continua a ser um expoente da pata da Igreja em Portugal. Portanto em Braga há esse desafio, esse desafio D. Juanesco, o tipo que vai lá buscar a noiva ao convento para fazer a sua ofensa a Deus, quer dizer, toma Deus como seu rival. Em 1970, já depois disto escrito, comecei a interrogar-me sobre o que seria libertino e libertinagem e não achei definição. Eu tinha li o Roger Vailland e tinha lido o Sade. A primeira pessoa que editou o Marquês de Sade em Portugal fui eu.
.K: O que é um libertino?
.
O libertino para mim, é mais fácil de definir pela negativa. A libertinagem não é o medo, não é a devassidão, não é a tristeza. É o ateu progressista. É preciso não esquecer que o Marquês de Sade, depois de ter saído da Bastilha, pertenceu a um comité do povo, e nesse comité do povo ele fez uma acção humana, que foi salvar a sogra que o tinha perseguido durante 40 anos ou coisa que o valha. Ele não mandou cortar a cabeça da sogra, mas a sogra merecia.
. K: Porque é que o libertino não é um devasso?
.O devasso é o gajo que não tem regras, é o gajo que vai a todas, é um bocadinho o Ribeiro de Mello, benza-o Deus, que já está no outro mundo. A Natália Correia é uma devassa, vocês ponham isso que ela fica toda zangada, mas ela é uma devassa. Por exemplo, ela foi à estreia, não, ela não foi à estreia mas foi lá ver a Comunidade e ela diz: «Afinal de contas o Luiz Pacheco é um pater famílias, a libertina sou eu». Eu, se estivesse lá dizia: «Ó sua maluca, você não é uma libertina, você é uma devassa», é uma estragadona que não respeita pai nem mãe, vai meter-se com o irmão de uma mulher minha, com um tio deste, quando eu estava preso no Limoeiro. Ela meteu-se com uma mulher minha. Quer dizer, abusou da situação de eu estar preso para aproveitar uma rapariga que estava lá em casa por caridade. E depois, quando eu saí, claro que fiz uma guerra, ataquei uma mulher dela, à má fila, para ela saber o que é bom. Portanto vocês têm uma noção de como é o libertino, eu tenho esta que é feita por negativas. O libertino faz da sua vida um espectáculo; ora este texto é um espectáculo, é a tal noção do cinema verité, quer dizer, vai mostrando o libertino a fazer aquelas maluqueiras todas, com o vinho verde, que é um vinho que não dá muita perturbação. Vai mostrando os fracassos, vai-se confessando, mas também há um certo gozo masoquista disso. O que não é tristeza.
.K: Portanto a diferença aí é mais o assumir o que o devasso esconde.
. Sim o devasso esconde e baralha, e…
.K: Em A Comunidade ou outros textos há sempre este jogo autor/personagem e, já agora, há a questão do Limoeiro.
. Quando eu digo que fui para o Limoeiro três vezes, as pessoas podem ficar a supor que matei o pai, matei a mãe, matei a avozinha. Quando fui para ao Limoeiro, por exemplo, por dar um beijo a uma menina de 15 anos! Pregaram comigo no Limoeiro por atentado ao pudor e depois de estar lá um mês, cheio de medo, absolveram-me.
. K: Foi denunciado por quem?
.Fui eu que me denunciei. Fui eu que disse na Judiciária. «O senhor teve alguma coisa com a menor?» «Sim beijei-a». «O senhor beijou-a?» O agente foi excepcionalmente simpático, disse-me: «Eu devo avisá-lo de uma coisa: a sua posição no processo permite-lhe mentir». Mas eu estava armado em D. Juan, em galã, «não, eu não venho aqui para mentir». Claro que também não disse a verdade toda. Não foi só o beijo, está claro. Mas nem o beijo comprometia a rapariga, e mostrava que tinha uma grande paixão por ela. Até tenho uma filha – a irmã mais nova deste chama-se Maria Eugénia por causa dessa rapariga.
Portanto, quando se fala em Limoeiro não vão julgar que eu andei para aí a esfaquear pai e mãe. Por exemplo, eu fiz coisas muito mais perigosas cá fora pelas quais nunca fui preso. Fui para ao Limoeiro e à cadeia das Caldas das Rainha duas ou cinco vezes.
.K: E também esteve num sanatório, não foi?
. Fui parar ao sanatório de Torres Vedras. As pessoas diziam: «Então este gajo é tuberculoso, tiraram-lhe um pulmão. Terá um cancro?» Não, fui parar ao sanatório porque não tinha onde dormir, não tinha onde comer e pedia. E como tinha a asma, lá ia para o sanatório com diagnóstico de tísico. Fui para ao Rego duas vezes com diagnóstico de diabetes descompensada. Ora eu nunca tive diabetes, eu pedia era à médica para me meter lá um mês ou dois no Rego a comer e a beber e dar-me injecções, que eram uns tónicos. Diabetes descompensada! Nunca tive diabetes na minha vida.
.K: Então as duas prisões foram sempre por atentado ao pudor?
.Atentado ao pudor não, estupro, primeiro, atentado ao pudor, e depois outra vez atentado ao pudor. Com a mãe daquele foi pior, foi por rapto e estupro. Não raptei nada. Bem, estupro, faz favor, nasceram três, nasceram dois e meio pelo menos.
. K: Porquê «meio»?
.Porque acho que esteve metido outro gajo.