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Ver para não crer (Parte 2)

Ver para não crer (Parte 2): "

Esta é a segunda e última parte de um post em que transcrevo Ver para não crer, terceiro capítulo do livro Morte por Buraco Negro e Outros Embaraços Cósmicos, do astrofísico Neil deGrasse Tyson. Se detectarem alguma gralha, já sabem: dêem-me a merecida descasca na zona de comentários!


Aos que chegam aqui directamente, sugiro começarem pela primeira parte. Aos leitores habituais e amantes de Astronomia do Bitaites, vamos prosseguir a leitura, sem mais demoras.




Pronto, o Sistema Solar é o centro do Universo


Sistema Solar


Agora que a Terra estava em órbita solar, tal como os seus irmãos planetários, onde é que isso colocava o Sol? No centro do Universo? Nem pensar. Ninguém iria cair nessa outra vez; isso violaria o recém-cunhado princípio coperniciano. Mas vamos investigar para ter a certeza.


Se o sistema solar fosse o centro do Universo, então, se olhássemos para o céu, não importa em que direcção, devíamos ver, aproximadamente, o mesmo número de estrelas. Contudo, se o sistema solar estivesse um pouco desviado para o lado, então supostamente deveríamos ver uma maior concentração de estrelas numa dada direcção – a direcção do centro do Universo.


Por volta de 1785, tendo feito o censo das estrelas por todo o céu e estimado grosseiramente as suas distâncias, o astrónomo inglês Sir William Herschel concluiu que o sistema solar estava de facto no centro do Universo.


Pouco mais de um século depois, o astrónomo holandês Jacobus Cornelius Kapteyn – usando os melhores métodos à sua disposição para calcular distâncias – quis verificar de uma vez por todas a localização do sistema solar na galáxia. Quando vista através de um telescópio, a banda de luz chamada Via Láctea surge-nos como uma densa concentração de estrelas. Medições cuidadosas das suas distâncias e posições dão-nos números semelhantes de estrelas em todas as direcções dentro da banda. Acima e abaixo dela, a concentração de estrelas diminui de forma simétrica.


Independentemente de para onde se olhe no céu, os números dão mais ou menos o mesmo na direcção oposta, desviada 180 graus. Kapteyn dedicou uns 20 anos a preparar o seu mapa do céu que, claro, mostrava que o sistema solar estava dentro do um por cento central do Universo. Não estávamos no centro exacto, mas estávamos suficientemente perto dele para podermos pensar que o nosso local no Espaço era especial.


A crueldade cósmica, no entanto, continuou.


Naquela altura, ninguém, muito menos Kapteyn, fazia a mínima ideia de que a maior parte das direcções de observação da Via Láctea não permitem ver até ao fim do Universo.


A Via Láctea tem imensas nuvens de gás e de poeiras que absorvem a luz emitida por objectos que estão por trás delas. Quando olhamos para a Via Láctea, mais de 99 por cento de todas as estrelas que deveríamos ver estão tapadas por nuvens gasosas pertencentes à própria Via Láctea. Presumir que a Terra estava no centro da Via Láctea (que era, na altura, todo o Universo conhecido) era como entrar numa floresta enorme e densa e, após uns pouco passos, concluir que se tinha chegado ao centro só porque se estava a ver o mesmo número de árvores em todas as direcções.


Por volta de 1920 – mas antes que o problema da absorção da luz estivesse bem percebido – Harlow Shapley, que viria a tornar-se director do Harvard College Observatory, estudou a distribuição espacial de enxames globulares da Via Láctea.


Os enxames globulares são concentrações muito coesas que chegam a ter um milhão de estrelas, e são facilmente vistos em regiões por cima e por baixo da Via Láctea, onde só é absorvida uma quantidade mínima de luz.


O raciocínio de Shapley era que estes enxames titânicos poderiam indicar o centro do Universo – um ponto que, afinal de contas, teria seguramente a concentração de massa mais elevada e a gravidade mais forte. Os dados de Shapley mostravam que o sistema solar não estava minimamente perto do centro da distribuição dos enxames globulares e, consequentemente, não estava sequer na vizinhança do centro do Universo conhecido.


Onde é que estava essa sítio especial que ele encontrou? A sessenta mil anos-luz de distância, mais ou menos na mesma direcção – mas muito para lá – das estrelas que compõem a constelação Sagitário.


As distâncias de Shapley eram demasiado grandes, mais do dobro dos valores correctos, mas ele tinha razão acerca do centro do sistema de enxames globulares. Este coincide com aquilo que mais tarde se descobriu ser a mais poderosa fonte de ondas de rádio do céu nocturno (as ondas de rádio não são atenuadas pelo gás e pelas poeiras de permeio). Os astrofísicos acabaram por identificar o local do pico das emissões de rádio como sendo o centro exacto da Via Láctea, mas não antes de terem ocorrido mais um ou dois episódios de ver para não crer.




Via Láctea, Via Única


Via Láctea


Foto: Stéphane Guisard, parte da série Los Cielos de América

Uma vez mais, o princípio coperniciano tinha triunfado. O sistema solar não estava no centro do Universo conhecido, estava sim num subúrbio bastante distante. Para os egos mais sensíveis, isso ainda poderia ser aceitável. Claramente, o vasto sistema de estrelas e nebulosas a que pertencíamos abarcava todo o Universo. Claramente, nós estávamos no sítio onde a acção estava a decorrer.


Népia.


A maior parte das nebulosas do céu nocturno são como universos-ilha, como foi proposto de forma clarividente no século XVIII por diversas pessoas, incluindo o filósofo sueco Emanuel Swedenborg, o astrónomo inglês Thomas Wright e o filósofo alemão Immanuel Kant.


Em Uma Teoria Original do Universo (1750), por exemplo, Wright especula acerca do carácter infinito do espaço, repleto de sistemas estelares semelhantes à nossa Via Láctea:


«Podemos concluir (…) que como a Criação visível está supostamente cheia de Ssitemas siderais e Mundos planetários, (…) a Imensidão sem fim é um Plano ilimitado de Criações não muito diferentes do Universo Conhecido (…)


Que isto seja com grande Probabilidade o caso real é até certo Ponto tornado evidente pelas muitas Manchas uniformes, das quais nos apercebemos no limite, tão longe das nossas Regiões estelares, em que, embora existam Espaços visivelmente luminosos, não se consegue de forma alguma distinguir qualquer Estrela ou Corpo constituinte específico; com toda a certeza essas são Criações externas, fronteiriças com a conhecida, demasiado remotas para sequer os nossos Telescópios as conseguirem alcançar».


As «Manchas nuviformes» de Wright são na verdade conjuntos de centenas de milhares de milhões de estrelas, situadas no espaço a uma distância enorme e visíveis sobretudo por cima e por baixo da Via Láctea. Acabou por se verificar que o resto das nebulosas são nuvens de gás relativamente pequenas e próximas, que se encontram sobretudo dentro da faixa da Via Láctea.


Que a Via Láctea é apenas uma entre a imensidade de galáxias que compõem o Universo foi uma das descobertas mais importantes da história da Ciência, mesmo que tenha, mais uma vez, feito com que nos sentíssemos pequenos.


O astrónomo responsável por esta ofensa foi Edwin Hubble, em honra de quem foi baptizado o Telescópio Espacial Hubble.


A demonstração ofensiva surgiu sob a forma de uma placa fotográfica tirada na noite de 5 de Outubro de 1923. O instrumento ofensivo foi o telescópio de 254 centímetros do Observatório do Monte Wilson, naquela altura o telescópio mais poderoso do mundo. O objecto cósmico ofensivo foi a nebulosa de Andrómeda, uma das maiores do céu nocturno.




A galáxia de Andrómeda


A galáxia de Andrómeda fotografada por Robert Gendler

Hubble descobriu dentro de Andrómeda um tipo de estrela muitíssimo luminosa que os astrónomos já conheciam dos seus censos das estrelas mais próximas de nós. As distâncias relativamente às estrelas mais próximas eram conhecidas e o seu brilho varia apenas com a sua distância. Ao aplicar a lei do inverso do quadrado ao brilho da luz estelar, Hubble derivou uma distância para a estrela em Andrómeda, colocando a nebulosa muito para lá de qualquer das estrelas conhecidas no nosso próprio sistema estelar.


Andrómeda era, na verdade, uma galáxia inteira, e podia-se ver, com instrumentos suficientemente poderosos, que a sua luz difusa estava a ser produzida por milhares de milhões de estrelas, todas elas situadas a mais de 2 milhões de anos-luz de distância.


Não só não nos encontrávamos no centro de tudo como, de um dia para o outro, toda a nossa galáxia da Via Láctea , o último pedaço da nossa auto-estima, encolheu para se tornar um borrão insignificantes num universo com multi-milhares de milhões de borrões e muitíssimo mais vasto do que aquilo que alguém já tivesse imaginado.




Multiborrões


(Vídeo: Veja este vídeo na sua respectiva página)


O «Multiverso» em versão «Family Guy»

Embora a Via Láctea se tenha revelado como sendo apenas uma entre um número incontável de galáxias, não seria ainda possível que nos encontrássemos no centro do Universo? Apenas seis anos depois de Hubble nos ter despromovido, ele reuniu todos os dados disponíveis acerca dos movimentos das galáxias. Dá-se o caso de quase todas elas parecerem afastar-se da Via Láctea, com velocidades directamente proporcionais às distâncias a que se encontram de nós.


Finalmente estávamos no meio de algo gigantesco: o Universo estava a expandir-se e nós éramos o seu centro.


Não, não nos íamos deixar enganar outra vez. Não é por parecer que estamos no centro do Cosmos que isso se verifica realmente. Com efeito, havia uma teoria do Universo à espera nos bastidores desde 1916, altura em que Einstein publicou o seu artigo acerca da Relatividade Geral – a teoria moderna da gravidade.


No Universo de Einstein, o tecido do espaço e do tempo deforma-se na presença de massa. Esta deformação, e o movimento dos objectos que surge em consequência, é aquilo que nós interpretamos como sendo a força da gravidade. Quando aplicada ao Cosmos, a Relatividade Geral permite que o espaço do Universo se expanda, arrastando consigo as suas galáxias constituintes.


Uma consequência notável desta nova realidade é que, para todos os observadores em todas as galáxias, o Universo parece estar a expandir-se para longe deles. É a ilusão de auto-importância definitiva, onde a Natureza engana não só os seres humanos conscientes da Terra, mas também todas as formas de vida que alguma vez já viveram em todo o espaço e tempo.


Mas pelo menos é óbvio que só existe um Cosmos – aquele em que vivemos numa feliz ilusão. Até ao momento, os cosmólogos não têm qualquer indício da existência de mais do que um universo. No entanto, se esticarem diversas leis da Física muito bem testadas até aos seus extremos ( ou ainda mais além), podem descrever o nascimento minúsculo, denso e quente do Universo como sendo uma espuma fervente de espaço-tempo sujeita a flutuações quânticas, sendo que qualquer uma delas poderia originar, por si só, um universo inteiro.


Neste Cosmos cruel poderíamos ocupar apenas um universo num «multiverso» que engloba inumeráveis outros universos, uns acabando por materializar-se, outros a terminarem a sua existência. Esta ideia relega-nos para uma parte muitíssimo mais embaraçosamente pequena do todo do que já tínhamos alguma vez imaginado. O que é que o Papa Paulo II pensaria disto?


A luta continua, e a escalas cada vez maiores. Hubble resumiu estes problemas na sua obra Reino das Nebulosas, de 1936, mas estas palavras poderiam aplicar-se a todas as etapas do nosso escurecimento:


«Assim, as explorações do Espaço terminam numa nota de incerteza… Conhecemos a nossa vizinhança imediata bastante bem. Com o aumentar da distância o nosso conhecimento dissipa-se rapidamente. Acabamos por atingir essa ténue fronteira – o limite máximo dos nossos telescópios. Ali, medimos sombras e procuramos, entre erros de medição fantasmagóricos, sinais que são pouco mais substanciais.»


Quais são as lições a retirar desta viagem mental? Que os seres humanos são os mestres emocionalmente frágeis, perenemente ligados a enganos e desesperadamente ignorantes de um grão de pó insignificativamente pequeno no Cosmos.


Tenham um bom dia.



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