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Diz-se que o homem, ao vestir aquele fato, torna-se misterioso e seu
comportamento muda completamente, ficando possuído por uma energia
que não se sabe de onde vem. Nas crenças das pessoas de Trás-os
Montes e da Beira Alta, existe qualquer coisa de mágico em todo o
ritual da festa que permite aos caretos fazerem coisas que os outros
não podem.
CARNAVAL DE PODENCE
Um carnaval dos diabos Metamorfoses do diaboNão há Entrudo sem tropelias. Em Podence, aldeia do concelho de Macedo de Cavaleiros, nada, ou quase nada, detém os bandos de Caretos que todos os anos saem para as ruas em desenfreadas correrias, perseguindo as moçoilas para as “chocalhar”.
Talvez mais do que em qualquer outro
lugar, o carnaval de Podence é uma elegia do movimento. Nos dias
grandes da festa — Domingo Gordo e Terça-feira de Carnaval —
os Caretos só param para se dessedentar ou para combinarem mais uma
investida sobre o Largo da Capela, a pequena praça da aldeia onde a
gente do lugar e um punhado de forasteiros curiosos se juntam para
assistir ao ritual. E como em todas as culturas e latitudes onde se
celebra a funçanata, o mote da agitação está impregnado de um
desígnio de licenciosidade, feição que tem pai e mãe na dualidade
profana e religiosa da tradição: tanto desvario serve para
despedida do Inverno e para anunciar a chegada da Primavera (em
Podence, os foliões costumam contar com a benção assídua do sol),
por um lado, e, por outro, para marcar (em excessos que supostamente
se filiam nas antigas saturnais romanas, festas de homenagem a
Saturno, deus das sementeiras) o início da Quaresma, um período de
contenção no calendário religioso cristão.
Recuperar
o Careto
As poucas centenas de habitantes de
Podence ainda colhem uma parte substancial do seu sustento da
actividade agrícola, cereais e castanha, essencialmente, ainda que
nos últimos anos a oliveira tenha vindo a ganhar terreno. Nos
difíceis anos da agonia do antigo regime e nos que se seguiram à
revolução de Abril, a emigração sangrou uma boa parcela da
população e o fenómeno teve as suas consequências tanto na
dimensão das actividades agrícolas como na garantia de continuidade
de tradições como as dos Caretos. Nos anos 70, conta-nos Rui
Carneiro, da Associação de Melhoramentos e Festividades de
Podence, não deveria haver na aldeia mais do que dois ou três
fatos de Caretos. Em meados dos anos 80, com o regresso de alguns
emigrados, a tradição das correrias retomou o fôlego antigo —
embora “o Careto seja hoje mais manso” — e as ruas da
aldeia voltaram a imergir na babel de mais de quarenta figuras
endemoninhadas aos saltos por todos os cantos. A antecipar a
continuidade da tradição, os Facanitos, crianças vestidas também
com os inconfundíveis fatos de retalhos de lã e com máscaras de
latão tentam imitá-los com as suas trôpegas e inconsequentes
corridas.
Nas festas do Entrudo, é a máscara que
confere todo o poder. Às iras dos Caretos endiabrados ninguém se
atreve a opôr-se. Apenas as Matrafonas (raparigas disfarçadas de
homens, ou vice-versa) são poupadas à sumária justiça
carnavalesca, assaz singular no caso da aldeia transmontana: os
demónios mascarados lançam-se ao assalto das moças e,
encostando-se a elas, ensaiam uma dança um tanto erótica, agitando
a cintura e fazendo embater os chocalhos que trazem pendurados contra
as ancas das vítimas. Rápido se aprende o que há a fazer: não
resistir e deixar o corpo ser levado no balanço do ritual, a única
forma de amenizar as nódoas negras. E como a violência de outrora
apenas sobrevive nas histórias que os mais velhos gostam de contar —
o Sr. Diniz, Careto aposentado com 80 anos, recorda que “os
Caretos agora são mais meiguinhos, antigamente puxávamo-lhes pelas
barbas...” — , toda a função se leva a cabo entre o alarido
festivo dos chocalhos e as risadas divertidas das vítimas.
Antigamente, era outra louça. As raparigas apenas saíam à rua
furtivamente, já que a punição era brava. O chocalhar ritual,
ainda que mais apurado, era só uma parte da pena. Havia também a
chuva de cinzas e de outros objectos e dejectos menos nobres, ou
ainda a fustigação com uma pele de coelho seca ou uma bexiga de
porco previamente “colocada no fumeiro como os salpicões”.
Particularmente cruel era o banho de formigas bravas que os Caretos
recolhiam em sacos de formigueiros que iam identificando
meticulosamente nos campos próximos meses antes. Este costume
bárbaro — mas seguramente muito divertido a avaliar pelas
gargalhadas prazeirentas dos Caretos que o descrevem — foi
abandonado há muito, mas há alguns anos atrás lembrou-se um Careto
de o ressuscitar. Em má hora, que a autoridade paternal a pesado
castigo o condenou.
Outras tropelias caídas em desuso
incluíam invasões intempestivas das casas e o consequente
destempero da paz doméstica, incluindo o virar dos potes que ao lume
ferviam o manjar: ficavam os da casa sem comer e partiam os demónios
aos gritos em busca de mais vítimas. Um dos Caretos não esconde uma
proeza recente: no meio da balbúrdia deu-lhe para partir uma vidraça
e assim soltar o fecho da porta: não é que do outro lado se
escondia a moça que havia que chocalhar?
Na investida bárbara que faz ecoar por
toda a aldeia o alarido dos chocalhos e o tropel surdos dos passos,
os Caretos levam tudo pela frente, indistintamente. É um modo de
dizer: por detrás da máscara de latão os olhos em fogo procuram
muitas vezes, confessam, “as moças mais apetecidas”, as
da terra ou as que de fora vêm — ainda que inadvertidamente —
para o sacrifício. “É preciso recuperar o Careto mau, se não
isto perde a graça”, oiço como uma espécie de aviso e de
declaração de que o politicamente correcto aqui como nos contos de
fadas pode ter um efeito mortal.
Outras vítimas conformadas destas
tropelias são os possidentes das adegas da terra. Reconhecidos pelo
bando alucinado, são feitos reféns e arrastados para as ditas onde
não lhes é deixada outra alternativa senão a de aliviar a sede aos
seus luciferianos raptores.
O
pregão casamenteiro
Tal como em Lazarim, outra aldeia
transmontana, localizada já perto das terras beirãs, ao sul de
Lamego, a catarse licenciosa realiza-se também na modalidade verbal.
No Domingo Gordo, armam-se os diabos em alcoviteiros e vai de
proclamar pelas ruas estremunhadas do povoado os casamentos
arquitectados pela sua engenhosa maldade: “À mais
proventa dá-se-lhe o mais atrasado”. Por outras palavras,
unem-se acintosamente os opostos. Munidos de um embude — amplo
funil que serve para verter o vinho —, enlaçam em fictício
noivado rapazes e raparigas de discordantes e inconciliáveis génios
e feitios, uma forma de sublinhar publicamente a censura a certas
idiossincrasias. Por detrás das janelas, as moças escutam o que
lhes coube em sorte e sabem que no dia seguinte não poderão recusar
a visita do “noivo”, o qual de manhã cedo lhes há- de “bater
à porta para lhes dar um abraço e tomar o pequeno almoço”.
Se algum desagrado se gerar nos íntimos mais delicados, manda a
tradição que se calem as queixas.
Não costumam estas farsas prover
assunto sério que termine no altar verdadeiro, mas se a fortuna
estiver do lado do moço podemos imaginar que lhe põem na mesa prato
e alfaias para os manjares de Entrudo. Venham então os enchidos, o
salpicão dos ossos, o pé de porco, o “azedo”, bexiga de porco
cheia de uma massa semelhante à da alheira, tudo regado com o
vigoroso vinho transmontano. Há-de o ímpeto recompor-se com tão
farto passadio, o que para o moço, se Careto for, é acha requerida
para a fogueira da festa. O dia seguinte, Terça-feira Gorda,
mergulhará de novo a aldeia numa vertigem de correrias e travessuras
que só acharão o seu termo quando a noite cair e os demónios
enfarpelados de fatos de franjas de cores vivas se cansarem de subir
varandas, de trepar aos telhados, de ziguezaguearem pelo Largo da
Capela e de dançarem uma estranha e breve dança erótica que faz
misturar o tilintar das chocalhos com o riso copioso e exuberante das
raparigas.
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