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Barbe-Bleue 1901

O cinema, como nós o conhecemos, não foi inventado pelos Irmãos Lumière, mas sim por um mágico francês de nome Georges Méliès. Foi ele quem, literalmente, mostrou que cinema era magia, que fotografias em movimento poderiam - ou mesmo deveriam - ser um meio para se registrar a ficção, o faz-de-conta, o impossível, e não apenas flagrar momentos do nosso cotidiano. Méliès ganha ainda mais importância quando falamos particularmente do cinema fantástico: ele praticamente inaugurou o gênero horror com Le Manoir du Diable (1896), fez a primeira obra-prima de ficção científica com Le Voyage dans la Lune (1902), e adaptou alguns contos de fadas tradicionais, como Cendrillon e Barbe-Bleue, nos quais pôde abusar de cenários espetaculares, com perspectiva e profundidade, e elaboradas tomadas com vários figurantes.
   Barbe-Bleue, ainda que não seja dos filmes mais comentados de Méliès, é o curta-metragem que costumo exibir na abertura do curso A História do Cinema de Horror, para mostrar aos participantes um dos primeiros exemplares desse gênero; ou, caso seja ousadia demais rotulá-lo de ‘horror’, pelo menos representa o que podemos considerar como embrião do horror cinematográfico e do filme fantástico como um todo. A idéia é surpreender a platéia com um trabalho que pode ser considerado visionário, sem qualquer exagero, e desta maneira derrubar logo de cara quaisquer preconceitos (ou, mais especificamente, ‘pré-conceitos’) ou resistências em relação àquilo que pode ser o cinema de horror.
   O curta é uma adaptação da tradicional história do assassino Barba Azul, imortalizada na versão do francês Charles Perrault, sobre um homem que se casa pela oitava vez, depois que suas sete esposas anteriores faleceram (aparentemente, de causas desconhecidas ou inexplicadas). Quando se muda para a mansão do marido, a oitava esposa recebe as chaves de todos os aposentos da propriedade, mas é instruída pelo marido a jamais entrar num dos quartos. Quando ele se ausenta, obviamente, a primeira coisa que ela faz é visitar o tal aposento proibido, dominada pela invencível curiosidade feminina.
   Visualmente, o curta tem todo o charme encantador e irresistível das produções de Méliès, com cenários suntuosos criados de maneira simples, figurinos espalhafatosos e objetos com dimensões exageradas para exprimir de maneira enfática sua função narrativa (destaque para a imensa garrafa de champanhe na festa de casamento e a chave desproporcional que Barba Azul entrega à esposa).
   É no terço final de seus breves nove minutos de duração que o filme ganha força e mostra a arte inimitável de Méliès: ao descobrir o segredo sinistro que o quarto proibido esconde, a nova esposa enfim percebe o perigo que está correndo. A partir desse momento, o turbilhão emocional enfrentado internamente pela heroína é representado visualmente por meio de imagens surrealistas que externam os pensamentos macabros da mulher, como quando ela enxerga as sete vítimas anteriores do Barba Azul como chaves gigantes - um recurso narrativo brilhante que imediatamente nos comunica que todas elas tiveram o mesmo fim trágico e sofreram a mesma punição. Desta maneira, o curta praticamente inventa o ‘horror psicológico’, estilo narrativo que os historiadores costumam afirmar ter surgido somente na década de 40, com as produções de Val Lewton, ou mesmo com o lançamento de Psicose, em 1960. Na pior das hipóteses, Barbe-Bleue antecipou em quase quinze anos The Avenging Conscience (1914), de D.W. Griffith, e em duas décadas a fantasia e o imaginário surreal do Expressionismo Alemão.
   O diabrete que aparece saltitante em cena, uma imagem recorrente nos filmes de Méliès, simboliza a mente envenenada pela curiosidade destrutiva e pela ação inconsequente, um ousado recurso narrativo que pontua o curta com momentos de puro surrealismo e fantasia. Um homem décadas à frente do seu tempo, George Méliès sofreu como tantos outros gênios da arte - incompreendido em sua época, desprezado e condenado ao ostracismo no fim da vida, mas posteriormente celebrado e reconhecido por suas criações revolucionárias que serviriam de inspiração para impulsionar definitivamente o cinema de fantasia, ficção científica e horror.


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