Barbe-Bleue, ainda que não seja dos filmes mais comentados de Méliès, é o curta-metragem que costumo exibir na abertura do curso A História do Cinema de Horror,
para mostrar aos participantes um dos primeiros exemplares desse
gênero; ou, caso seja ousadia demais rotulá-lo de ‘horror’, pelo menos
representa o que podemos considerar como embrião do horror
cinematográfico e do filme fantástico como um todo. A idéia é
surpreender a platéia com um trabalho que pode ser considerado
visionário, sem qualquer exagero, e desta maneira derrubar logo de cara
quaisquer preconceitos (ou, mais especificamente, ‘pré-conceitos’) ou
resistências em relação àquilo que pode ser o cinema de horror.
O curta é uma adaptação da tradicional história do assassino Barba
Azul, imortalizada na versão do francês Charles Perrault, sobre um homem
que se casa pela oitava vez, depois que suas sete esposas anteriores
faleceram (aparentemente, de causas desconhecidas ou inexplicadas).
Quando se muda para a mansão do marido, a oitava esposa recebe as chaves
de todos os aposentos da propriedade, mas é instruída pelo marido a
jamais entrar num dos quartos. Quando ele se ausenta, obviamente, a
primeira coisa que ela faz é visitar o tal aposento proibido, dominada
pela invencível curiosidade feminina.
Visualmente, o curta tem todo o charme encantador e irresistível das
produções de Méliès, com cenários suntuosos criados de maneira simples,
figurinos espalhafatosos e objetos com dimensões exageradas para
exprimir de maneira enfática sua função narrativa (destaque para a
imensa garrafa de champanhe na festa de casamento e a chave
desproporcional que Barba Azul entrega à esposa).
É no
terço final de seus breves nove minutos de duração que o filme ganha
força e mostra a arte inimitável de Méliès: ao descobrir o segredo
sinistro que o quarto proibido esconde, a nova esposa enfim percebe o
perigo que está correndo. A partir desse momento, o turbilhão emocional
enfrentado internamente pela heroína é representado visualmente por meio
de imagens surrealistas que externam os pensamentos macabros da mulher,
como quando ela enxerga as sete vítimas anteriores do Barba Azul como
chaves gigantes - um recurso narrativo brilhante que imediatamente nos
comunica que todas elas tiveram o mesmo fim trágico e sofreram a mesma
punição. Desta maneira, o curta praticamente inventa o ‘horror
psicológico’, estilo narrativo que os historiadores costumam afirmar ter
surgido somente na década de 40, com as produções de Val Lewton, ou
mesmo com o lançamento de Psicose, em 1960. Na pior das hipóteses, Barbe-Bleue antecipou em quase quinze anos The Avenging Conscience (1914), de D.W. Griffith, e em duas décadas a fantasia e o imaginário surreal do Expressionismo Alemão.
O diabrete que aparece saltitante em cena, uma imagem recorrente nos
filmes de Méliès, simboliza a mente envenenada pela curiosidade
destrutiva e pela ação inconsequente, um ousado recurso narrativo que
pontua o curta com momentos de puro surrealismo e fantasia. Um homem
décadas à frente do seu tempo, George Méliès sofreu como tantos outros
gênios da arte - incompreendido em sua época, desprezado e condenado ao
ostracismo no fim da vida, mas posteriormente celebrado e reconhecido
por suas criações revolucionárias que serviriam de inspiração para
impulsionar definitivamente o cinema de fantasia, ficção científica e
horror.