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Mútuo consentimento
Luís Maio, Fugas, Público, 03.12.2011
Estação de metro do Cais do Sodré, 9h20 da manhã, segunda-feira de um dia de trabalho qualquer. A carruagem mais perto das bilheteiras estava a abarrotar quando soou o primeiro toque contínuo, a anunciar que o comboio estava prestes a arrancar. Nesse preciso momento entrou de rompante na dita carruagem um tipo com um “canhão” montado na máquina fotográfica. Deu meia dúzia de encontrões para arranjar espaço e começou a fotografar compulsivamente o pessoal ao fundo da carruagem. Até saltar do comboio a toda a mecha, mal ressoou o segundo sinal descontínuo de fecho de portas
No mesmo dia, ao fim da tarde, desta feita no piso superior da gare ferroviária do Rossio, estava outro tipo (sim, tenho a certeza que não era o mesmo) sentado, na verdade quase deitado, com uma “olho de peixe” a disparar furiosamente os passageiros à saída das portas automáticas. Não sei se por diversão, se por exercício ou por compromisso profissional. O que eu sei é que estes dois estavam deliberadamente a tirar retratos sem licença aos utentes dos transportes públicos. O que, apesar das teorias mais ou menos mercenárias de Oliviero “United Colors” Toscani e doutros ideólogos da fotografia, é um crime punível pela lei, pelo menos segundo as leis comunitárias.
Talvez ninguém vá preso por causa disso, não certamente em Portugal, mas tirar fotografias a quem não quer ser fotografado é feio e muitas vezes dá direito a discussão. Nesta perspectiva, parece estranho que seja também um dos passatempos favoritos dos turistas. Quando se está de férias no estrangeiro, sobretudo em lugares exóticos do Terceiro Mundo, parece perfeitamente natural apontar a câmara a crianças que brincam seminuas na praia, a artesãos andrajosos, explorados em oficinas miseráveis, a noivos infelizes em casamentos combinados, ou a velhinhos adormecidos em poses menos decorosas nos bancos de jardim. Aproveitando a embalagem alguns turistas vão ao ponto de se divertirem a tirar bonecos comprometedores a pessoal da candonga, jovens delinquentes e mesmo mulheres da vida.
O “uniforme” de forasteiro parece conferir a quem anda de compacta em punho um misto de inocência e de liberdade, que não anda muito longe da impunidade. A ousadia que ganha o turista em férias é, em qualquer dos casos, a mesma que lhe falta no dia-a-dia e essa assimetria ajuda a explicar por que razão a câmara é um adereço indispensável em férias, mas é também a primeira coisa que se arruma na gaveta quando se volta a casa. Aí reside o paradoxo: vamos para o cu de Judas tirar retratos a malta que não conhecemos de lado nenhum, nós que não somos fotógrafos e nunca teríamos a coragem nem a motivação para o fazer à porta de casa. Prova dos nove: algum dos retratistas de rostos exóticos se deu ao trabalho, ou melhor, teve a coragem de fotografar os vizinhos da rua?
É, no entanto, um daqueles paradoxos que faz todo o sentido. Porque se vamos de férias para outro lado é frequentemente para ver e conhecer gente diferente. Depois ficamos sem jeito, como dizem os brasileiros, e não temos outro meio de meter conversa que não seja apontar a máquina fotográfica aos eventuais interlocutores. Acaba assim por se converter num gesto de simpatia e de cortesia o que vulgarmente passa por falta de respeito. Primeiro nós sorrimos e eles sorriem — ou então dizem logo que não com a cabeça e passamos à frente. Quando a coisa corre bem, no entanto, depois trocam-se gestos e palavras numa língua comum, ou noutra que se inventa com as que vêm à rede. É nesse princípio de qualquer coisa que acabam por estar os momentos mais inesquecíveis de uma viagem.
Foi justamente o que aconteceu com esta senhora do quiosque da gare de uma terriola remota, no sul do Cazaquistão, onde o comboio onde eu seguia para Astana fez uma breve escala. Primeiro assustou-se quando lhe apontei o telemóvel e meteu-se para dentro. Depois arranjou-se e voltou à janela do quiosque com o seu melhor sorriso. Tirada a fotografia apareceu o marido, que era pica-bilhetes, mais uma senhora que vinha no comboio e falava comigo em inglês e com eles em russo. Falámos de chouriços e de gomas, de crianças e da neve que tinha caído na noite anterior, antes de trocarmos moradas e de eu prometer mandar-lhe a foto.
(Título tomado de empréstimo do novo álbum de Sérgio Godinho)