Sérgio Godinho: 40 anos de canções (1):
Um olhar pela história da discografia de Sérgio Godinho, caminhando através de 40 anos de canções, desde o EP de estreia em 1971 ao mais recente álbum editado já este ano. Esta é a primeira parte de um texto originalmente publicado no caderno Q., do Diário de Notícias, a 4 de Novembro deste ano.
Quando, de ano a ano, se fala da eventualidade da atribuição de um Nobel da Literatura a Bob Dylan (e porque não a Leonard Cohen ?), as opiniões divergem, estando longe de ser pacífico (não confundir com unânime) o reconhecimento da escrita de letras de canções como uma forma poética que possa ser tida em conta como literatura... Deixando esse debate nobiliário para uma outra ocasião, o certo é que também entre nós podemos procurar obras musicais onde faça sentido a identificação de uma relação com a palavra que transcenda os patamares mais habitualmente visitados pelos letristas. E se há obra onde essa relação vai bem mais longe que o habitual a de Sérgio Godinho é exemplo a ter em conta.
“Ler Sérgio Godinho não é o mesmo que ouvi-lo. Em primeiro lugar, ele produz fundamentalmente para o sentido do ouvido, não para o sentido da vista – e a própria linguagem verbal se encarrega de o dizer, com as suas sonoridades densas, as suas rimas, sua fluência, sua oralidade, suas repetições”, defende Arnaldo Saraiva em Canções de Sérgio Godinho (livro publicado em 1977 pela Assírio & Alvim). E aí lembra ainda que “Sérgio Godinho é seguramente em Portugal o cantor popular cujas letras no geral resistem melhor à separação da música”. Qualifica-o inclusivamente como o “melhor letrista” de canções portuguesas, “poeta de qualidade equivalente à de um Brassens, de um Caetano Veloso e, não tenhamos medo de o dizer, poeta de maior qualidade do que muitos que andam pelas antologias da velha e da novíssima poesia portuguesa e pelas salas das universidades”.
2011assinala os seus 40 anos de discos Na verdade já havia títulos com a participação de Sérgio Godinho antes desse 1971 que assitiu ao lançamento do EP (5) Romance de Um Dia Na Estrada (oficialmente o seu primeiro disco a solo), que antecedeu a edição de Os Sobreviventes, o seu primeiro álbum, editado já em 1972. Em 1969 tinha já colaborado no EP Seis Cantigas de Amigo, de José Mário Branco. E se quisermos recuar ao seu “primeiro” disco de facto, teremos de regressar ao Porto, aos seus dias de estudante de piano, num disco de 78 rotações gravado na Ideal Rádio como presente de aniversário para a sua mãe, em 1955. Bem antes das canções, portanto. O assinalar desta data redonda fez-se recentemente com um novo disco de originais ao qual chamou Mútuo Consentimento. É um disco que, mesmo revelando abertura à comunicação com formas musicais do presente (no plano da composição e arranjos, sobretudo nas colaborações com Bernardo Sassetti, António Serginho e Noiserv), não deixa de ser mais um episódio de continuidade na construção de uma discografia da qual é em tudo um pleno herdeiro.
“A música é tamanha, cabe em qualquer medida”, canta Sérgio Godinho logo nos primeiros instantes de Mão na Música, a canção que abre o alinhamento deste seu 17º álbum de originais). Mais que apenas uma canção (onde usa mais a fala que o canto, recurso já antes visitado em temas como O Elixir da Eterna Juventude ou As Armas do Amor), esta é uma reflexão sobre a música por quem a faz há já várias décadas. “A música não tem explicações / a dar a si mesma / Isso explica tudo”, conta-nos mais adiante. É quase uma síntese não apenas de uma maneira de estar na música, mas sobretudo de como a música deu (e ainda dá) sentido a uma voz que é, reconhecidamente, uma das mais marcantes de toda a história da música portuguesa. A música, diz-nos ainda a canção “não tem barreiras”, “referenda a liberdade”, “mede-se com caneta e gravador”. E “faz aos poemas / aquilo que os poemas / quiseram fazer dela: render-se / E aos outros propõe: / rendam-se / Tréguas e batalhas / sem ordem de aviso”.
Desde cedo a obra de Sérgio Godinho aponta quatro grandes núcleos em torno dos quais nascem muitas das suas canções. De resto, logo no seu álbum Os Sobreviventes encontramos logo exemplos desses quatro caminhos. Canções vivenciais como são os casos do Romance de um dia na estrada, Descansa a Cabeça (estalajadeira) e Farto de Voar. Histórias de amor, como escutamos em Paula. Primeiros retratos de figuras (e figurões), como é o caso do Charlatão. E ainda temas com um teor contestatário e crítico como recordamos em Que Força é Essa, Que Bom que É ou Senhor Marquês.
A visibilidade que algumas dessas suas canções de alma política mais evidente ganharam, sobretudo nos dias imediatamente posteriores aos da revolução, juntaram-no a outras vozes que, então cantavam um tempo de mudança que de vivia em Portugal (alguns já com obra anterior a 74, outros somente revelados depois do 25 de Abril). E foi talvez pelos ecos do impacte de canções como Liberdade, Que Força É Essa ou tantas outras focadas no Portugal de então, que o músico ganhou um rótulo de cantor de intervenção. Descrição de vistas algo curtas perante os mais largos horizontes de uma obra que em nada se esgota na canção política (por muito importante que tenha sido a sua contribuição para o espaço da canção de protesto, sobretudo nos anos 70). O próprio Sérgio Godinho sente essa como uma designação “redutora”. E, como explica em Canto de Intervenção, o historiador Eduardo M. Barroso (ed. Biblioteca Museu República e Resistência, 2000), o músico “nunca respondeu muito por essa designação”. Na mesma página o próprio Sérgio Godinho acrescenta que “canções que são reflexões filosóficas, vivenciais, sobre a maneira de estar, sobre o amor, sobre a sociedade” representam mais o espectro que lhe “interessa tocar”. Ainda sobre a relação com o espaço da música de intervenção lembra a propósito um tempo “quando se começou a arrumar os cantores na prateleira, numa altura em que era como se do Zeca só se conhecesse a Grândola”.
Um olhar pela história da discografia de Sérgio Godinho, caminhando através de 40 anos de canções, desde o EP de estreia em 1971 ao mais recente álbum editado já este ano. Esta é a primeira parte de um texto originalmente publicado no caderno Q., do Diário de Notícias, a 4 de Novembro deste ano.
Quando, de ano a ano, se fala da eventualidade da atribuição de um Nobel da Literatura a Bob Dylan (e porque não a Leonard Cohen ?), as opiniões divergem, estando longe de ser pacífico (não confundir com unânime) o reconhecimento da escrita de letras de canções como uma forma poética que possa ser tida em conta como literatura... Deixando esse debate nobiliário para uma outra ocasião, o certo é que também entre nós podemos procurar obras musicais onde faça sentido a identificação de uma relação com a palavra que transcenda os patamares mais habitualmente visitados pelos letristas. E se há obra onde essa relação vai bem mais longe que o habitual a de Sérgio Godinho é exemplo a ter em conta.
“Ler Sérgio Godinho não é o mesmo que ouvi-lo. Em primeiro lugar, ele produz fundamentalmente para o sentido do ouvido, não para o sentido da vista – e a própria linguagem verbal se encarrega de o dizer, com as suas sonoridades densas, as suas rimas, sua fluência, sua oralidade, suas repetições”, defende Arnaldo Saraiva em Canções de Sérgio Godinho (livro publicado em 1977 pela Assírio & Alvim). E aí lembra ainda que “Sérgio Godinho é seguramente em Portugal o cantor popular cujas letras no geral resistem melhor à separação da música”. Qualifica-o inclusivamente como o “melhor letrista” de canções portuguesas, “poeta de qualidade equivalente à de um Brassens, de um Caetano Veloso e, não tenhamos medo de o dizer, poeta de maior qualidade do que muitos que andam pelas antologias da velha e da novíssima poesia portuguesa e pelas salas das universidades”.
2011assinala os seus 40 anos de discos Na verdade já havia títulos com a participação de Sérgio Godinho antes desse 1971 que assitiu ao lançamento do EP (5) Romance de Um Dia Na Estrada (oficialmente o seu primeiro disco a solo), que antecedeu a edição de Os Sobreviventes, o seu primeiro álbum, editado já em 1972. Em 1969 tinha já colaborado no EP Seis Cantigas de Amigo, de José Mário Branco. E se quisermos recuar ao seu “primeiro” disco de facto, teremos de regressar ao Porto, aos seus dias de estudante de piano, num disco de 78 rotações gravado na Ideal Rádio como presente de aniversário para a sua mãe, em 1955. Bem antes das canções, portanto. O assinalar desta data redonda fez-se recentemente com um novo disco de originais ao qual chamou Mútuo Consentimento. É um disco que, mesmo revelando abertura à comunicação com formas musicais do presente (no plano da composição e arranjos, sobretudo nas colaborações com Bernardo Sassetti, António Serginho e Noiserv), não deixa de ser mais um episódio de continuidade na construção de uma discografia da qual é em tudo um pleno herdeiro.
“A música é tamanha, cabe em qualquer medida”, canta Sérgio Godinho logo nos primeiros instantes de Mão na Música, a canção que abre o alinhamento deste seu 17º álbum de originais). Mais que apenas uma canção (onde usa mais a fala que o canto, recurso já antes visitado em temas como O Elixir da Eterna Juventude ou As Armas do Amor), esta é uma reflexão sobre a música por quem a faz há já várias décadas. “A música não tem explicações / a dar a si mesma / Isso explica tudo”, conta-nos mais adiante. É quase uma síntese não apenas de uma maneira de estar na música, mas sobretudo de como a música deu (e ainda dá) sentido a uma voz que é, reconhecidamente, uma das mais marcantes de toda a história da música portuguesa. A música, diz-nos ainda a canção “não tem barreiras”, “referenda a liberdade”, “mede-se com caneta e gravador”. E “faz aos poemas / aquilo que os poemas / quiseram fazer dela: render-se / E aos outros propõe: / rendam-se / Tréguas e batalhas / sem ordem de aviso”.
'Os Sobreviventes' (1972) |
A visibilidade que algumas dessas suas canções de alma política mais evidente ganharam, sobretudo nos dias imediatamente posteriores aos da revolução, juntaram-no a outras vozes que, então cantavam um tempo de mudança que de vivia em Portugal (alguns já com obra anterior a 74, outros somente revelados depois do 25 de Abril). E foi talvez pelos ecos do impacte de canções como Liberdade, Que Força É Essa ou tantas outras focadas no Portugal de então, que o músico ganhou um rótulo de cantor de intervenção. Descrição de vistas algo curtas perante os mais largos horizontes de uma obra que em nada se esgota na canção política (por muito importante que tenha sido a sua contribuição para o espaço da canção de protesto, sobretudo nos anos 70). O próprio Sérgio Godinho sente essa como uma designação “redutora”. E, como explica em Canto de Intervenção, o historiador Eduardo M. Barroso (ed. Biblioteca Museu República e Resistência, 2000), o músico “nunca respondeu muito por essa designação”. Na mesma página o próprio Sérgio Godinho acrescenta que “canções que são reflexões filosóficas, vivenciais, sobre a maneira de estar, sobre o amor, sobre a sociedade” representam mais o espectro que lhe “interessa tocar”. Ainda sobre a relação com o espaço da música de intervenção lembra a propósito um tempo “quando se começou a arrumar os cantores na prateleira, numa altura em que era como se do Zeca só se conhecesse a Grândola”.
(continua)